Por Tatiany Carvalho
Uma montanha de 16 toneladas de lixo era o céu e o inferno de todos os dias para homens, mulheres, adolescentes e crianças, que se confundiam entre os detritos dos contornos imaginários da cidade de Canabrava.
Aquela paisagem inóspita resistiu aproximadamente 25 anos, quando foi transformada, em 1997, e reorganizada segundo os preceitos modernos da reciclagem. A derrocada do império do lixão não levou à bancarrota as cerca de 900 famílias que utilizavam o lixo como fonte de renda. Parte dos badameiros - como ficaram conhecidos os catadores - foi integrada a projetos sociais e cooperativas, inaugurando a cultura da reciclagem em Salvador e região metropolitana.
Hoje existem mais de seis cooperativas de coleta seletiva na região, resgatando a auto-estima e a dignidade dos catadores. O exemplo, infelizmente, não serve para todos. Nos principais pontos de depósito de lixo urbano, famílias inteiras disputam migalhas desse lucrativo comércio em meio às moscas e urubus.
Canabrava era o excremento da própria sociedade, matéria vil, mas, paradoxalmente, foi por esta mesma humanidade alimentada durante toda a sua existência. Era do lixo urbano de Salvador que vinha, além do prato de comida para a legião de desempregados, a perspectiva de exploração econômica. Em meio aos dejetos e alimentos vencidos, os badameiros disputavam entre si, às vezes utilizando a força física, materiais que, até hoje, são confundidos com lixo: plástico, papelão, papel, PET, latas de alumínio e de ferro, vidro, dentre outros que podem ser reaproveitados no ciclo industrial. O pesadelo da cidade fantasma acabou, mas a desinformação da sociedade sobre a reciclagem ainda ajuda a manter legiões de flagelados nos pontos de coleta do lixo urbano.
Trabalho precário - A disposição inadequada dos subprodutos da sociedade de consumo acaba motivando pessoas como Irineu Batista da Silva, 52 anos, ao trabalho de forma precária e desprotegida. Sem utilizar materiais de proteção, como botas e luvas, Irineu se submete ao mau cheiro e ao risco de contaminação de doenças, como a leptospirose, à procura de PET, lata e papelão no meio do lixo. "Tem dia que eu acho alguma coisa, mas tem dia que eu não acho nada. Às vezes, eu consigo R$2", comentou. Ele abandonou sua cidade natal, Santa Inês, para construir a vida na capital e já teve carteira assinada. O desemprego ocorreu há cerca de quatro meses, conta, e não surgiu nova oportunidade, fato agravado pelo analfabetismo.
A garota Janaína, 6 anos, nunca estudou. O irmão, Elenilson, 11 anos, só freqüentou a escola até os 7 anos. A maior parte do tempo eles passam com a mãe, Irani Batista da Silva, 42 anos, que, há pouco mais de 12 meses passou a coletar materiais recicláveis nos pontos de coleta de lixo. "Se Deus ajudasse, eu me saía daqui. Eu preferia qualquer uma coisa para sair daqui. Uma casa de família, uma lavagem de roupa", lista. As crianças são filhos de pai biscateiro, mas têm casa para morar. Quase que diariamente, eles andam cerca de quatro quilômetros - o menino ajuda a empurrar um carrinho que pesa, com a carga, entre cinco e dez quilos. Sobre o futuro, Irani responde, sem perspectivas: "Vamos ver daqui para a frente se aparece alguma coisa".
O sustento em meio ao lixo orgânico também é fonte de renda, se assim pode se dizer, para Ivanize Maria dos Santos, 30 anos, e Denise Maria dos Santos, 29. Elas trocaram a roça, no município de Ipirá, há dez anos, pela vida no centro urbano de Salvador. Filhas da pobreza, as duas irmãs também não são alfabetizadas. Tentaram, sem sucesso, uma vaga em uma cooperativa de reciclagem, mas a busca foi em vão, porque não há vagas para todos os interessados. "Não consegui emprego nas cooperativas", lamenta Ivanize. Elas trabalham na coleta informal, vasculhando o lixo urbano. Precisam de mais ou menos uma semana para encher um saco com latinhas de alumínio. Quando revendem aos atravessadores, ganham cerca de R$10 pela mercadoria. A vida no lixo transforma-se, inclusive, em meio de alimentação, apesar de a maioria dos entrevistados negar. As irmãs foram as únicas que assumiram o fato: "O que dá para nós comer, nós come".
Procura por trabalho supera vagas
Muitos tentam largar a vida de biscate nas ruas, mas nem todos conseguem ingressar numa cooperativa de catadores autônomos. Na cidade de Salvador, existem apenas duas cooperativas de catadores. A Cooperativa dos Agentes Autônomos de Reciclagem (Coopcicla) é a pioneira. A entidade foi criada em outubro de 1996, mas somente em agosto de 1999 foi formalizada. A Cooperativa de Catadores Agentes Ecológicos de Canabrava (Caec) é a novata, com cerca de dois anos de existência. Juntas, elas absorvem cerca de 150 pessoas, face a um universo de milhares de flagelados sociais.
A luz apareceu no fim do túnel, mas a tempo de resgatar a vida quando o mundo insistia em dizer-lhes não. Foram 27 anos respirando o ar saturado com gás metano, resultante da decomposição do lixo, em Canabrava. "Eu descobri o lixão e passei a trabalhar lá porque achava que a vida ia melhorar para mim", conta a ex-lavadeira, que trocou as roupas pelo biscate em Canabrava. Hoje Teresa Gomes dos Santos, 58 anos, é um dos 80 cooperados da Unidade de Triagem da Coopcicla, parte integrante do Projeto Socioambiental de Canabrava - que resgatou parte dos ex-badameiros.
Teresa deixou para trás a insalubridade do lixão e atualmente ganha cerca de R$140 por quinzena, de acordo com a produtividade que é repartida igualmente entre o grupo. Os materiais chegam à Unidade de Triagem dos 61 Postos de Entrega Voluntária (PEVs) instalados na cidade, com apoio da prefeitura de Salvador, através da Empresa de Limpeza Urbana (Limpurb).
Os 45 cooperados que trabalham na unidade base da Coopcicla, nas Sete Portas, foram selecionados entre catadores de rua e ex-badameiros. Entre os benefícios, o coordenador Edson Cabral diz que todos contribuem para o INSS, têm direito a almoço, despesa funeral, consulta médica, serviço odontológico e custeio das despesas com medicamento. "A cooperativa está fazendo um trabalho social", afirma. Os cooperados recolhem os recicláveis, já separados do lixo orgânico, nos domicílios e pontos comerciais que são contemplados pela rota de coleta. Por mês, ganham por produção entre R$430 e R$450.
Caec - São os próprios cooperados que gerenciam a coleta seletiva na Caec. A entidade conta com assessoramento técnico da Ong Pangea - Centro de Estudos Socioambientais e teve aporte inicial de cerca de R$500 mil da União Européia. A Secretaria Estadual de Combate à Pobreza e Desigualdades Sociais (Secomp) é um dos parceiros da Caec, através do programa Reciclar para Crescer. A auto-sustentabilidade é projetada para o prazo de um ano.
Eles formam um grupo de 47 cooperados, todos ex-badameiros, que recebem atualmente cerca de R$279 a R$288 por mês, com base na produtividade. "A sociedade olhava para nós com olhos maus. A gente se sentia mal como a gente vivia antes. O Pangea tirou a gente da escuridão. Hoje a gente trabalha e sabe como gastar", destaca o vice-presidente da Caec, Genivaldo Bispo dos Santos, 34 anos, cinco deles trabalhados no lixão de Canabrava. A Caec não possui sede própria e, assim como a Coopcicla, não tem recursos suficientes para investir na aquisição de máquinas e permitir a expansão da atividade.
Caminho do Cooperativismo
É necessário que se atendam três aspectos: infra-estrutura, mão-de-obra e documentação legal.
Infra-estrutura - Galpão para recebimento dos materiais recicláveis; equipamentos como balanças, prensas e carrinhos.
Mão-de-obra - De modo geral, os cooperados não têm vínculo empregatício com a cooperativa. Os cooperados são, portanto, trabalhadores autônomos, que recebem de acordo com a quantidade de material coletada ou em razão da receita obtida pela cooperativa, rateada em partes iguais entre seus membros.
Documentação legal - Com a ajuda de um advogado, os cooperados devem elaborar um estatuto que contenha todas as normas de administração que vão reger a cooperativa. A lei exige um número mínimo de 20 pessoas para se montar uma cooperativa. Também é necessária a inscrição da entidade junto à prefeitura. Finalmente, as cooperativas também são tributadas, pagando ICMS e IPTU.
Fonte: Correio da Bahia
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